A respeito da Infeliz
decisão do STF, saliento as palavras do Cardeal
Odilo Pedro Scherer :
“Não é belo, não é digno, não é ético,
diante da vida humana frágil, fazer recurso à violência, ou valer-se do poder
dos fortes e saudáveis para dar-lhe o fim, negando-lhe aquele pouco de
vida que a natureza lhe concedeu.”.
Bebês
anencefálicos podem ser abortados?
Cardeal
Odilo Pedro Scherer
Arcebispo
de São Paulo
O
tema representa um sério desafio atual, a ser abordado com serenidade e
objetividade, tendo em conta critérios antropológicos e éticos gerais, e também
os referenciais do ordenamento jurídico brasileiro, a começar da própria
Constituição Nacional. O Supremo Tribunal Federal deverá pronunciar-se sobre a
“legalidade” do abortamento de fetos, ou bebês acometidos por essa grave
deficiência, que não lhes permitirá viver por muito tempo fora do seio materno,
se chegarem a nascer.
A
partir da minha missão de bispo da Igreja e cidadão brasileiro, sinto-me no
dever de manifestar minha posição e de dizer uma palavra que possa ajudar no
discernimento diante da questão. A decisão tem evidentes implicações éticas e
morais; desejo concentrar minha reflexão sobre alguns desafios muito
específicos, que se referem à dignidade da pessoa e da vida humana.
Em
relação aos anencéfalos, existe o pedido da Confederação dos Trabalhadores da
Área da Saúde para que o Supremo Tribunal Federal reconheça e estabeleça a
legalidade da “antecipação terapêutica do parto” desses bebês, com forte
pressão de grupos favoráveis ao aborto. No calor de muita emoção, podem não ser
adequadamente percebidos os examinados argumentos falaciosos, que acabam por se
tornar decisivos.
Os
principais argumentos alegados a favor do aborto, nesse caso, são os seguintes:
a
) Tratar-se-ia de “vidas inviáveis” fora do útero materno; uma vez que os
anencéfalos não sobrevivem por muito tempo fora do seio materno, para que
manter semelhante gravidez e levá-la até o fim?
b) A
gravidez de um anencéfalo representaria, para a mãe, um sofrimento
insuportável, uma verdadeira “tortura”, que degradaria a dignidade da mulher;
c) Tratando-se
de uma “anomalia”, o ser daí resultante seria indefinível, um “não-ser”, um
“não-humano”; portanto, em relação a ele não entrariam em questão os argumentos
do respeito à vida e à dignidade humana;
d) Toda
a atenção deveria ser dada à mãe, nesses casos, o único sujeito de direitos e
de dignidade, a ser tutelado e protegido pela lei;
e) Os
bebês anencéfalos seriam “natimortos”, pois a ausência parcial ou total do
cérebro equivaleria à morte cerebral; para que manter tal gravidez? Por isso
mesmo, os bebês acometidos por essa anomalia, que chegam a nascer, podem ser
colocados na mesma condição dos adultos que estão com “morte cerebral” e seus
órgãos poderiam ser retirados e doados.
f) O
Brasil é um dos países que têm a maior incidência de anencefalia; seria
necessário baixar este triste quadro.
Como
se pode perceber facilmente, esses argumentos mereceriam ser examinados
profundamente por peritos da área médica, do direito e da ética. De qualquer
modo, as implicações morais são graves e não podem ser simplesmente resolvidas
na emoção de um debate na opinião pública, ou a partir dos resultados de pesquisas
de opinião, o que pode ser uma fácil tentação.
Os
principais argumentos empregados pela CNBB são os seguintes:
a) O
anencéfalo, malgrado a sua condição, é um ser humano vivo; por isso, ele merece
todo o respeito devido a qualquer ser humano; ainda mais, por se tratar de um
ser humano extremamente fragilizado; a sociedade, por meio de suas
Instituições, deve tutelar o respeito pleno à sua frágil vida e à sua
dignidade.
b) O
sofrimento da mãe é compreensível e deve ser levado plenamente a sério; mas não
pode ser argumento suficiente para suprimir a vida de um bebê com anomalia. Se
o sofrimento da mãe, ainda que grande, fosse considerado argumento válido para
provocar um aborto, estaria sendo aprovado o princípio segundo o qual pode ser
tirada a vida de um ser humano que causa sofrimento grave a um outro ser
humano. Não só em caso de aborto...
c) O
sofrimento da mãe, que é pessoa adulta, pode e deve ser mitigado de muitas
maneiras, quer pela medicina, pela psicologia, pela religião e pela
solidariedade social; além disso, trata-se de um sofrimento circunscrito no
tempo, que pode mesmo dignificar a mulher que o aceita, em vista do filho; mas
a vida de um bebê, uma vez suprimida, não pode ser recuperada; e o sofrimento
moral decorrente de um aborto provocado pode durar uma vida inteira. Além do
mais, o sofrimento da mãe e o respeito à vida e à dignidade do filho são duas
realidades de grandezas e pesos muito diversos e não podem ser, simplesmente,
colocados no mesmo nível; o benefício do alívio de um sofrimento não pode ser
equiparado ao dano de uma vida humana suprimida.
d) É
preconceituoso e fora de propósito afirmar que a dignidade da mãe é aviltada
pela geração de um filho com anomalia; tal argumentação pode suscitar, ou
aprofundar um preconceito cultural contra mulheres que geram um filho com
alguma anomalia ou deficiência; isso sim, seria uma verdadeira agressão à
dignidade da mulher.
e) O
valor da vida humana não decorre da duração dessa mesma vida, ou do grau de
satisfação que ela possa trazer aos outros, ou a ela própria. O ser humano é
respeitável sempre, por ele mesmo; por isso, sua dignidade e seu direito à vida
é intocável.
f) O
cerne de toda a questão está nisso: os anencéfalos são “seres humanos”? São
“seres humanos vivos”? Apesar dos argumentos contrários, não há como colocar em
dúvida a resposta afirmativa às duas perguntas. Portanto, daí decorre, como consequência,
que ele deve ser tratado como “ser humano vivo”.
g) Permanece,
de toda maneira, válido que só Deus é senhor da vida e não cabe ao homem
eliminar seu semelhante, dando-lhe a morte; nem mesmo aqueles seres humanos que
não satisfazem aos padrões estéticos, culturais, ou de “qualidade de vida”
estabelecidos pela sociedade ou pelas ideologias. A vida humana deve ser
acolhida, sem pré-condições; não somos nós que damos origem a ela, mas ela é
sempre um dom gratuito. Não é belo, não é digno, não é ético, diante da vida
humana frágil, fazer recurso à violência, ou valer-se do poder dos fortes
e saudáveis para dar-lhe o fim, negando-lhe aquele pouco de vida que a
natureza lhe concedeu. Digno da condição humana, nesses casos, é desdobrar-se
em cuidados e dar largas à solidariedade e à compaixão, para acolhê-la e
tratá-la com cuidado, até que seu fim natural aconteça.
São
Paulo, 03.04.2012